A usucapião é uma forma de adquirir a propriedade de um imóvel pelo exercício prolongado da posse, sem depender de escritura. Segundo Arnaldo Rizzardo, trata-se de “forma originária de aquisição da propriedade, pois o adquirente torna seu o bem”. Ou seja, o possuidor passa a ser considerado dono porque exerce sobre o imóvel todos os poderes inerentes à propriedade, por tempo legalmente definido. Francisco Loureiro observa que a usucapião não serve apenas para legitimar quem ocupa um imóvel, mas também para “sanear aquisições derivadas imperfeitas” – por exemplo, quando alguém comprou de pessoa que não era a verdadeira dona.
Existem várias modalidades de usucapião, cada uma com requisitos específicos. Em termos gerais:
- Extraordinária – Exige 15 anos de posse ininterrupta, pacífica e com animus domini (intenção de dono). Não precisa de “justo título” nem boa-fé. Se o possuidor construiu sua moradia ou fez benfeitorias de caráter produtivo, esse prazo cai para 10 anos. (Art. 1.238 do CC).
- Ordinária (de justo título) – Exige 10 anos de posse contínua, pacífica e com animus domini, além de justo título e boa-fé. Esse prazo pode ser reduzido para 5 anos se o imóvel foi registrado e depois o registro foi cancelado, e o possuidor lá estabeleceu sua moradia ou fez investimento social/econômico. (Art. 1.242 do CC).
- Especial Urbana (constitucional) – Prevista no Art. 183 da CF e Art. 1.240 do CC. Concede o domínio a quem possuir área urbana de até 250m² por 5 anos, de forma ininterrupta e sem oposição, usando o imóvel como moradia, desde que não seja proprietário de outro imóvel (urbano ou rural).
- Especial Rural (constitucional) – Prevista no Art. 191 da CF e Art. 1.239 do CC. Exige 5 anos de posse de área rural de até 50 hectares, com uso produtivo e moradia, sem o possuidor ser proprietário de outro imóvel.
- Especial Familiar – Introduzida pela Lei 12.424/2011 (Art. 1.240-A do CC). Aplica-se ao casal ou ex-cônjuge: quem mora em imóvel urbano de até 250m², cuja propriedade seja dividida com o ex-companheiro que abandonou o lar, por 2 anos ininterruptos, com exclusividade de posse e sem ser proprietário de outro imóvel, adquire o domínio integral. Em resumo: exige 2 anos de posse exclusiva em imóvel até 250m² após abandono pelo outro cônjuge.
Cada modalidade exige prova documental ou testemunhal dos requisitos (como continuidade da posse, uso, pagamento de tributos, etc.), mas não entraremos aqui em detalhes processuais de cada tipo. O foco é entender a regra geral: para usucapir, precisa-se de tempo certo de posse, as condições de paz (sem conflito violento), continuidade, publicidade (não secreta) e, em algumas modalidades, animus domini, título e boa-fé.
Quando começa a contar o prazo e como pode ser interrompido/suspenso
O prazo de usucapião começa a contar a partir do momento em que o ocupante passa a exercer efetivamente a posse como se fosse o proprietário. Em geral, isso ocorre quando ele passa a usar o imóvel de forma tranquila, pública e contínua, assumindo a postura de dono (fazer reformas, pagar contas, cuidar do lugar). Se a pessoa entrou no imóvel em caráter precário (ex.: inquilino ou ocupante sem título), o prazo legal só inicia quando ela deixa claro que não é mais mero locatário, mas atua como dono (ver tópico adiante sobre animus domini).
Durante o período de contagem, certos fatos podem suspender ou interromper o prazo:
- Suspensão do prazo: situações que paralisam a contagem por um período. Por exemplo, nos termos do art. 10 do antigo Código Civil (atual art. 1.244, § único), são causas de suspensão da usucapião as mesmas que suspenderiam a prescrição – como a ausência do possuidor por motivo de serviço público ou internamento, ou declaração de interdição em relação ao possuidor, etc. Nessas hipóteses, o relógio para de correr enquanto durar a causa. Em geral, são casos em que a posse deixa de correr por fato alheio (guerra, engano, etc.).
- Interrupção do prazo: implica reiniciar a contagem do zero. Clássicos exemplos (no direito antigo, e aplicáveis por analogia hoje) são: o proprietário ajuizar ação de reivindicação ou interdito contra o possuidor, ou lavrar um protesto público (editais). Esses atos expressam oposição clara do dono à continuação da posse, o que obriga o pretenso usucapiente a recomeçar a contagem. É o oposto de “posse continua e pacífica” (se houver desavença efetiva, diz-se que a posse foi contestada).
Importante: segundo o STJ, a simples contestação em uma ação de usucapião não interrompe o prazo aquisitivo. Ou seja, se o dono réu apenas apresenta contestação na própria ação de usucapião, isso não é considerado “oposição suficiente” para reiniciar a contagem. O STJ explicou que a contestação judicial simplesmente demonstra discordância com a usucapião, mas não significa que o ocupante deixou de ter “posse mansa e pacífica” – e, portanto, não reinicia o prazo. Em outras palavras, enquanto o usucapião corre, o dono só interrompe o prazo agindo com “inércia ativa”: por exemplo, ingressando com ação própria contra a posse (reivindicatória, demolitória ou interdito) ou fazendo um ato formal de oposição, não basta apenas contestar na ação já iniciada.
Por que a contestação não interrompe o prazo (jurisprudência do STJ)
Um dos pontos principais do REsp 1.909.276/RJ foi justamente esse: o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que “a contestação não tem a capacidade de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião”. Em termos práticos, isso significa que mesmo após o réu apresentar contestação, o juiz analisa o tempo de posse contínua do autor ininterruptamente, sem reiniciar a contagem. Esse entendimento já vinha em precedentes anteriores e foi reafirmado na decisão de 2022.
Portanto, o mero fato de haver ação judicial de usucapião em curso não afeta o cómputo do tempo se o ocupante continua a exercer a posse pacificamente. O prazo de usucapião é “dialógico”: basta que a posse permaneça intacta e sem oposição genuína, e a simples defesa do réu na usucapião não é vista como oposição efetiva.
De locatário/comediante a possuidor com animus domini
A jurisprudência também reconhece que a natureza da posse pode mudar ao longo do tempo. Por exemplo, alguém que inicialmente estava no imóvel como locatário (pagando aluguel) ou comodatário (em empréstimo gratuito) pode, com o decorrer dos anos, passar a se comportar como proprietário. Isso geralmente ocorre se o ocupante realiza modificações relevantes, investimentos, assume despesas (IPTU, contas) e age como dono, abrindo mão de alegar o contrato inicial. Nesses casos, entende-se que a posse “substantivamente” se transformou, adquirindo animus domini (a intenção de ter o imóvel como próprio).
No caso do REsp 1.909.276/RJ, o STJ destacou: “A posse exercida pelo locatário pode se transmudar em posse com animus domini na hipótese em que ocorrer substancial alteração da situação fática”. Isto é, se comprovadas mudanças substanciais – como cessar o pagamento de aluguel, fazer benfeitorias e assumir tributos – o juiz pode reconhecer que o prazo passou a correr desde que esse “espírito de dono” se firmou. Em resumo, uma posse iniciada sob contrato (locação ou comodato) não impede, em si, o usucapião, contanto que o ocupante demonstre que mudou a sua conduta e passou a agir como dono.
Usucapião completado durante a ação judicial
Outra questão analisada é se o prazo exigido para usucapião precisa estar completo no momento da propositura da ação. O STJ decidiu que não: o prazo pode ser completado ao longo do processo, e o juiz deve considerá-lo ao julgar. Esse entendimento decorre do artigo 493 do Código de Processo Civil, que permite ao magistrado levar em conta fatos ocorridos depois do início da demanda, mas que influenciem o mérito.
No julgamento, ficou claro que se o tempo de posse necessário for atingido apenas no curso da ação, isso não prejudica o autor. Como destacou o acórdão: “É possível o reconhecimento da prescrição aquisitiva ainda que o prazo exigido por lei se complete apenas no curso da ação de usucapião”. Em outras palavras, se faltavam poucos meses e o autor completa esses meses durante o trâmite do processo, o direito deve ser reconhecido normalmente na sentença, em atenção à economia processual. O CPC art. 493 prevê essa situação: quaisquer fatos supervenientes que alterem a pretensão devem ser considerados, o que no caso é exatamente a consumação do tempo de posse. Assim, não é preciso propor nova ação; basta que o juiz analise o tempo total (até a sentença) para decidir sobre a usucapião.
Dispositivos legais pertinentes
Para orientar a usucapião, destacam-se alguns dispositivos:
- CC, art. 1.238 – Define a usucapião extraordinária (15 anos de posse ininterrupta): “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade…”.
- CC, art. 1.240 – Regula a usucapião especial urbana (5 anos, área até 250m²): “Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio…”.
- CC, art. 1.240-A – Disciplina o usucapião especial familiar (2 anos, imóvel até 250m² dividido com ex-cônjuge que abandonou o lar): “Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² cuja propriedade divida com ex-cônjuge … que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral…”.
- CPC, art. 493 – Permite ao juiz considerar fatos ocorridos após a propositura da ação, influindo no mérito: “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração…”. (É o dispositivo que justifica reconhecer a usucapião quando o prazo se completa durante o processo.)
Esses textos deixam claro os requisitos básicos e a flexibilidade processual. Além disso, o artigo 1.243 do CC prevê que o possuidor pode somar o tempo de posse de antecessores (familiares) para alcançar o período exigido, contanto que continuadas e pacíficas. Em suma, a lei brasileira contempla o usucapião de forma detalhada, e a jurisprudência do STJ interpreta esses dispositivos para garantir segurança jurídica ao possuidor que cumpre os requisitos.
Documentos essenciais para ajuizar a ação de usucapião
Para entrar com a ação judicial de usucapião, é preciso reunir documentos que comprovem a posse e identifiquem as partes e o imóvel. Entre os principais estão:
- Documentos pessoais do autor: cópias do RG, CPF e, se houver, certidão de casamento ou pacto antenupcial. Esses comprovam a capacidade (maioridade) e o estado civil de quem pleiteia.
- Certidão de matrícula do imóvel: documento atualizado emitido pelo Cartório de Registro de Imóveis, que mostra a matrícula e a situação atual do imóvel (proprietários registrados, eventual ônus, descrição).
- Também é útil obter certidões negativas (como de débitos fiscais do imóvel), para demonstrar regularidade.
- Planta e memorial descritivo do imóvel: representação gráfica assinada por profissional habilitado (engenheiro/arquitetos), indicando metragem, confrontações, benfeitorias e localização. É exigido em muitas varas para que o juiz entenda a área envolvida.
- Comprovantes de residência e posse: quaisquer contas (água, luz, IPTU, telefone) em nome do autor para provar que ele reside/lá permanece há anos no imóvel. Declaração de endereço pode complementar.
- Provas da posse: isto inclui documentação que demonstre a ocupação contínua – por exemplo, recibos de aluguel iniciais (no caso de transição de locatário para possuidor), comprovantes de reformas ou investimentos feitos, comprovantes de pagamento de tributos, fotos do imóvel, etc. São importantes também declarações de testemunhas (vizinhos, comerciantes locais etc.) que confirmem a moradia do autor no local durante o período alegado.
- Relação de confrontantes e certidões negativas: a identificação dos vizinhos (confrontantes) e certidões para demonstrar que ninguém (por meio de ação judicial) se opôs à posse durante o prazo. Normalmente, solicita-se certidões de ações penais, cíveis e até de interdição para comprovar a inexistência de medidas contra o possuidor.
- Procuração/justificante de advogado: como o processo precisa de representação por advogado, juntar procuração assinada pelo autor nomeando o advogado é obrigatório.
- Petição inicial (discutida no corpo da ação): deve narrar os fatos (como o autor ocupou o imóvel, por que considera a posse ininterrupta e com animus domini, que não há oposição, etc.), e requerer a declaração de usucapião. Em geral, acompanha uma lista de testemunhas que possam confirmar a posse pacífica.
Em síntese, deve-se provar no processo toda a linha do tempo da posse. Documentos (escrituras antigas, contratos, contas, IPTU, fotos, boletins de ocorrência) e testemunhas que atestem o uso contínuo ajudam a convencer o juiz. Cada caso pode exigir provas específicas, mas a lista acima cobre os itens básicos para fundamentar uma ação de usucapião com chances reais de sucesso.
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FONTES:
Doutrina de Rizzardo e Loureiro sobre usucapião e jurisprudência do STJ (REsp 1.909.276/RJ) que esclarece os pontos acima. Códigos Civil e de Processo Civil também foram consultados para apoiar as definições legais (arts. 1.238, 1.240, 1.240-A do CC; art. 493 do CPC).
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Usucapião. Por ACS, publicado em 21 jun. 2019. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/usucapiao. Acesso em: 28 maio 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.726.804 – RJ (2018/0018687-8). Relator: Ministro Moura Ribeiro. Recorrente: J&F Investimentos S.A. Recorrido: Dragão Química Indústria e Comércio Ltda. Brasília, DF: STJ, set. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/. Acesso em: 28 maio 2025.